Recomeça a batalha pela prisão em segunda instância

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É possível que um político cujas condenações judiciais por corrupção e outros crimes correlatos somam mais de 400 anos esteja, agora, apto a caminhar livremente pelas ruas? No Brasil, sim – e Sérgio Cabral está aí para comprová-lo. O ex-governador fluminense teve revogada sua última ordem de prisão domiciliar e está solto; terá de usar tornozeleira eletrônica, precisará se apresentar mensalmente a um tribunal e não poderá sair do país. Mas, para qualquer brasileiro com um senso mínimo de justiça, isso é muito pouco. Algumas das condenações de Cabral até foram confirmadas na segunda instância, mas a jabuticaba jurídica da “prisão em quarta instância†aprovada pelo STF em 2019 impede que Cabral pague por seus crimes da forma devida.

A nova legislatura, no entanto, reacende as esperanças de que possamos ver a prisão após condenação em segunda instância definitivamente inserida no ordenamento jurídico nacional, e dois parlamentares que estreiam no Legislativo já mostraram a que vieram nesse sentido. O senador Sergio Moro (União Brasil-PR) pediu o desarquivamento do PLS 166/2018, de autoria do ex-senador gaúcho Lasier Martins e que chegou a ser aprovado em forma de substitutivo na Comissão de Constituição e Justiça da casa em 2019; e o deputado federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR) protocolou requerimento para a criação de uma Comissão Especial que analise a PEC 199/2019.

A nova legislatura reacende as esperanças de que possamos ver a prisão após condenação em segunda instância definitivamente inserida no ordenamento jurídico nacional

O PLS 166 altera o Código de Processo Penal, que hoje diz, em seu artigo 283, que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventivaâ€. O projeto substitui “sentença condenatória transitada em julgado†por “condenação criminal exarada por órgão colegiado†e muda outros trechos do CPP para não deixar nenhum fio solto quanto à possibilidade de se iniciar o cumprimento da pena após a condenação por um colegiado. Já a PEC 199 adapta uma sugestão do ex-ministro do STF Cezar Peluso e altera os artigos 102 e 105 da Constituição, que tratam das competências do Supremo e do STJ: pela proposta, a interposição de recursos especial (apresentado ao STJ) e extraordinário (apresentado ao Supremo) “não obsta o trânsito em julgado da decisão recorridaâ€, indicando que este trânsito em julgado ocorreria já na segunda instância. São caminhos diferentes, mas complementares e necessários, já que, para que não fique nenhuma dúvida, é preciso mudar tanto a Constituição quanto a legislação infraconstitucional – afinal, foi uma discussão sobre o artigo 283 do CPP que levou à revogação da prisão em segunda instância pelo Supremo em 2019.

A iniciativa não é novidade para nenhum deles. Quando era ministro da Justiça do governo de Jair Bolsonaro, Moro incluiu a prisão em segunda instância no pacote anticrime, exatamente pela alteração do artigo 283 do CPP, mas o Congresso, ao desfigurar o texto, deixou de fora essa mudança. E Dallagnol participou da formulação das Dez Medidas Contra a Corrupção, projeto do Ministério Público Federal que conquistou grande apoio popular por meio da coleta de assinaturas, antes de também naufragar no Congresso. E ambos foram eleitos com a plataforma do combate à corrupção, sinal de que o eleitor não se esqueceu da importância do assunto para a construção de uma sociedade mais justa.

Nunca é demais recordar: a prisão em segunda instância é a norma em praticamente todas as democracias sólidas do Ocidente (isso quando não se começa a cumprir a pena já após a condenação em primeira instância). E, no Brasil, foi a regra durante muitas décadas, inclusive após a promulgação da Constituição de 1988 – desde a redemocratização, os únicos períodos marcados pela “prisão em quarta instância†foram o de 2009 a 2016 e o atual, iniciado em 2019. Na estrutura do Judiciário brasileiro, é na segunda instância que termina a análise da culpa, ou seja, se o réu cometeu ou não o crime do qual é acusado; os tribunais superiores analisam apenas questões processuais, não declaram ninguém culpado ou inocente. Com a prisão em segunda instância, ficam preservados o direito à ampla defesa, a presunção de inocência, o duplo grau de jurisdição. As garantias constitucionais são respeitadas, mas fechando-se a porta para a impunidade característica de crimes de colarinho branco, em que réus e seus advogados navegam com maestria o labirinto processual brasileiro para protelar o desfecho dos processos.

 

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